Mariana,
como muitos outros municípios brasileiros, depende da mineração. O
prefeito da cidade foi apenas sincero ao realçar esse fato em
diversas entrevistas que concedeu à imprensa. Assim, é apenas
natural que um grande número de famílias marianenses se sinta
insegura diante das consequências que podem advir para a empresa da
catástrofe que ela própria, Samarco, produziu.
O
fato bruto se impõe: não há alternativa, no curto e talvez mesmo
no médio prazo, para a mineração. Teremos de conviver com ela. A
questão é saber em
que condições vai se dar esse convívio daqui para a frente.
O que as primeiras manifestações realizadas na cidade fizeram a
questão de ressaltar é que, para além da urgência de se reparar
as perdas das famílias e comunidades atingidas, a mineração,
tal como praticada nos termos atuais, chegou ao seu limite. Uma
mineração feita ao arrepio de qualquer controle sério e
independente, que adentra o perímetro urbano das cidades, que
emprega enormes quantidades da água de nossos rios e mananciais a
custo zero, que insiste numa política de desinformação, que pede
carta branca para a expansão de suas atividades em troca do aumento
dos royalties. A tragédia de Mariana mostra que a persistência
desse modelo em pleno século 21 é mais que um anacronismo. É um
crime.
Fotos: O Tempo, 18/11/2015 |
Já
se esperava que a empresa acionasse sua rede de stakeholders
para tentar reverter a maré desfavorável da opinião pública.
Diante do descaso com o meio ambiente, da perda de vidas humanas,
diante do gigantismo da destruição e de imagens que não serão
apagadas da memória, só haveria uma alternativa possível: insuflar
esposas e filhos de trabalhadores da mineração a um "vem para
a rua" em defesa não da comunidade e das vítimas, mas de si
mesma.
A
mineração não acabou nem acabará tão cedo. Mas um modelo, o
atual, cujas bases são essencialmente as mesmas desde o Brasil
Colônia, esse sim acabou em 5 de novembro de 2015. É sem dúvida
fácil para as grandes mineradoras insuflar aqueles que dela dependem
a irem para as ruas. Velada, paira sobre elas a ameaça. A mesma
ameaça que sempre impede as pessoas de "falarem mal" da
Vale, da Samarco. Há olheiros. Há quem possa denunciar ao
supervisor. Uma cidade, a mais antiga de Minas, feita refém.
Quanto
na verdade são elas, as empresas, que precisam do nosso subsolo, que
precisam da força de trabalho local. Somente os ingênuos acreditam
que Samarco e Vale possam dar suas costas para Mariana, deixando seus
bilhões para trás.
Mas
mesmo a ingenuidade tem limites. Os que vestem camisas com os dizeres
"Somos todos Samarco" não praticam solidariedade uns em
relação aos outros ou em relação à cidade, mas praticam sim uma
forma perversa de egoísmo coletivo. Os nossos interesses
acima de todos os demais. Que viva Mariana, nem que para isso pereça
o mundo. Em cada rosto de adulto (pois o único medo autêntico ali
era o das crianças), lê-se a triste e dura mensagem desse egoísmo
coletivo: "Retomem-se as atividades da Samarco, queremos tudo
como antes, acidentes acontecem. Quem mora a jusante, que procure
resolver os seus problemas, vejam que a empresa está fazendo o que
pode. Só não matem a galinha dos ovos de ouro. Estamos aqui para
defender nossos interesses e, quanto às feridas, o tempo há
de curá-las."
Em
Mariana, cidade tricentenária em que o cidadão comum está isento
de pagar conta de água porque "há de sobra nas redondezas",
continua-se a acreditar que recursos hídricos e minerais são
infinitos, e que a ação do homem sobre a natureza pode continuar
seu curso irresponsável desde que cada um receba sua parte dos
lucros. A parte que lhe cabe nesse latifúndio, diria o poeta.
De
modo que a verdade pode ser ainda pior do que gostaríamos. Em grande
medida, a ação das mineradoras continua irresponsável, alheia a
quaisquer limites racionais e éticos porque a maior parte das
pessoas nesta cidade funciona segundo a mesmíssima lógica: a lei
primeira é a do interesse pessoal ou, o que dá no mesmo, do egoísmo
coletivo.
O
que levou centenas de pessoas às ruas ontem, ostentando faixas e
cartazes em defesa de uma empresa que cometeu o maior crime ambiental
da história do Brasil, bem pode ter sido o medo. Pode ter sido
também uma forma qualquer de "falsa consciência". Mas foi
ainda, e isso é triste, a recusa em refletir sobre o significado
mais profundo da tragédia de Mariana. A incapacidade de se colocar
uma simples pergunta: esse modelo acabou, ou deve ser mantido
enquanto houver uma grama de minério a extrair do nosso chão? As
cidades mineradoras podem ou não desenhar um outro futuro para si?
A
falta de imaginação, tanto quanto o egoísmo coletivo ou o cinismo
de um marketing obtido à custa de ameaças veladas, é que tem
roubado a Mariana a possibilidade de um futuro melhor.
texto perfeito.
ResponderExcluir