quarta-feira, 18 de novembro de 2015

"Fica Samarco": entre o egoísmo coletivo e a falta de imaginação



Mariana, como muitos outros municípios brasileiros, depende da mineração. O prefeito da cidade foi apenas sincero ao realçar esse fato em diversas entrevistas que concedeu à imprensa. Assim, é apenas natural que um grande número de famílias marianenses se sinta insegura diante das consequências que podem advir para a empresa da catástrofe que ela própria, Samarco, produziu.

O fato bruto se impõe: não há alternativa, no curto e talvez mesmo no médio prazo, para a mineração. Teremos de conviver com ela. A questão é saber em que condições vai se dar esse convívio daqui para a frente. O que as primeiras manifestações realizadas na cidade fizeram a questão de ressaltar é que, para além da urgência de se reparar as perdas das famílias e comunidades atingidas, a mineração, tal como praticada nos termos atuais, chegou ao seu limite. Uma mineração feita ao arrepio de qualquer controle sério e independente, que adentra o perímetro urbano das cidades, que emprega enormes quantidades da água de nossos rios e mananciais a custo zero, que insiste numa política de desinformação, que pede carta branca para a expansão de suas atividades em troca do aumento dos royalties. A tragédia de Mariana mostra que a persistência desse modelo em pleno século 21 é mais que um anacronismo. É um crime.

Fotos: O Tempo, 18/11/2015
 
Já se esperava que a empresa acionasse sua rede de stakeholders para tentar reverter a maré desfavorável da opinião pública. Diante do descaso com o meio ambiente, da perda de vidas humanas, diante do gigantismo da destruição e de imagens que não serão apagadas da memória, só haveria uma alternativa possível: insuflar esposas e filhos de trabalhadores da mineração a um "vem para a rua" em defesa não da comunidade e das vítimas, mas de si mesma.

A mineração não acabou nem acabará tão cedo. Mas um modelo, o atual, cujas bases são essencialmente as mesmas desde o Brasil Colônia, esse sim acabou em 5 de novembro de 2015. É sem dúvida fácil para as grandes mineradoras insuflar aqueles que dela dependem a irem para as ruas. Velada, paira sobre elas a ameaça. A mesma ameaça que sempre impede as pessoas de "falarem mal" da Vale, da Samarco. Há olheiros. Há quem possa denunciar ao supervisor. Uma cidade, a mais antiga de Minas, feita refém.

Quanto na verdade são elas, as empresas, que precisam do nosso subsolo, que precisam da força de trabalho local. Somente os ingênuos acreditam que Samarco e Vale possam dar suas costas para Mariana, deixando seus bilhões para trás.

Mas mesmo a ingenuidade tem limites. Os que vestem camisas com os dizeres "Somos todos Samarco" não praticam solidariedade uns em relação aos outros ou em relação à cidade, mas praticam sim uma forma perversa de egoísmo coletivo. Os nossos interesses acima de todos os demais. Que viva Mariana, nem que para isso pereça o mundo. Em cada rosto de adulto (pois o único medo autêntico ali era o das crianças), lê-se a triste e dura mensagem desse egoísmo coletivo: "Retomem-se as atividades da Samarco, queremos tudo como antes, acidentes acontecem. Quem mora a jusante, que procure resolver os seus problemas, vejam que a empresa está fazendo o que pode. Só não matem a galinha dos ovos de ouro. Estamos aqui para defender nossos interesses e, quanto às feridas, o tempo há de curá-las."

Em Mariana, cidade tricentenária em que o cidadão comum está isento de pagar conta de água porque "há de sobra nas redondezas", continua-se a acreditar que recursos hídricos e minerais são infinitos, e que a ação do homem sobre a natureza pode continuar seu curso irresponsável desde que cada um receba sua parte dos lucros. A parte que lhe cabe nesse latifúndio, diria o poeta.

De modo que a verdade pode ser ainda pior do que gostaríamos. Em grande medida, a ação das mineradoras continua irresponsável, alheia a quaisquer limites racionais e éticos porque a maior parte das pessoas nesta cidade funciona segundo a mesmíssima lógica: a lei primeira é a do interesse pessoal ou, o que dá no mesmo, do egoísmo coletivo.

O que levou centenas de pessoas às ruas ontem, ostentando faixas e cartazes em defesa de uma empresa que cometeu o maior crime ambiental da história do Brasil, bem pode ter sido o medo. Pode ter sido também uma forma qualquer de "falsa consciência". Mas foi ainda, e isso é triste, a recusa em refletir sobre o significado mais profundo da tragédia de Mariana. A incapacidade de se colocar uma simples pergunta: esse modelo acabou, ou deve ser mantido enquanto houver uma grama de minério a extrair do nosso chão? As cidades mineradoras podem ou não desenhar um outro futuro para si?

A falta de imaginação, tanto quanto o egoísmo coletivo ou o cinismo de um marketing obtido à custa de ameaças veladas, é que tem roubado a Mariana a possibilidade de um futuro melhor.


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